Caio Naressi é cineasta independente e também Mestre em cinema documentário pela Universidade Lumière Lyon 2. Atualmente pesquisa a relação da memória autobiográfica e o cinema de animação.
Sabe aquele momento antes de entrar em sono profundo, em que a mente vagueia entre o real e o imaginário, entre aquilo que pode destruir uma boa noite de sono e o despertar ingrato da insônia? O momento preciso no qual o cérebro é quem vai decidir se a ansiedade vai estarrecer o corpo e acelerar o batimento cardíaco ou se deixar levar pelas imagens oníricas do delírio pré-sonho? É nesse preciso momento que um estrondo irrompe a sala de cinema e nos tira do transe para nos colocar atentos.
Essa é a cena inicial de Memória (2021), último filme do realizador tailandês Apichatpong Weerasethakul, que arrebatou a minha mente. Pesquiso já há algum tempo a memória em seus diversos enlaçamentos: filosófico, neurológico e, claro, cinematográfico. É um tema bastante complexo que se intercala com a própria questão do Tempo. Um dos filósofos que mais se aproxima do meu anseio em entender a memória é Henri Bergson, que consegue traduzir minha percepção de que o tempo não segue uma linha reta, como ficamos acostumados a entender, mas sim um fluxo contínuo de momentos mais ou menos em linha vertical. O passado está acima de nós, não atrás. Existimos tal qual um cone ao contrário em que o vértice somos nós e o corpo do cone é o passado, onde se alojam todas as nossas memórias [1].
É impossível nos separarmos daquilo que fomos. O toque, poder inicial da nossa percepção desde bebês, carrega consigo a experiência dos objetos. As pedras também sabem sua história, como aprendemos com outro personagem do filme.
É essa dimensão espaço-temporal que o filme de Apichatpong discute com uma beleza de nos angustiar a consciência. Acordada por um barulho ensurdecedor, Jessica (Tilda Swinton) deseja entender o que é esse som que atravessa com força sua existência. É o som da inquietude, de algo que se passou e que precisa ser investigado. A partir desse impulso, Jessica vai tentar recriar esse barulho para trazer para a realidade algo que ela ouve apenas em sua mente.
Neste processo, diversos aspectos da dimensão memorial vão aparecendo em seu caminho. Entre eles, o fóssil secular de uma jovem, encontrado em uma escavação, e que traz diversas elucidações sobre a morte daquele esqueleto. Além de explicações pautadas em um passado sociológico daquela civilização que persiste enquanto memória dentro de nós. É impossível nos separarmos daquilo que fomos. O toque, poder inicial da nossa percepção desde bebês, carrega consigo a experiência dos objetos. As pedras também sabem sua história, como aprendemos com outro personagem do filme.
Memória nos coloca em um sistema de percepção aguçada da realidade que nos contorna. Lembro que uma das primeiras coisas que fiz ao ver os pedaços esparsos do templo grego de Nike foi tocá-lo discretamente; era uma necessidade primordial de poder sentir tudo aquilo que o mármore poderia me dizer através do toque. Uma ânsia infantil, talvez, mas uma experiência inevitável. A memória está presa ao Tempo e o que aprendemos no filme de Apichatpong é que o tempo não se encontra nem à frente nem atrás de nós, mas em um longo e contínuo momento presente.
Um outro belo filme para exemplificar a construção da nossa experiência com a memória é o Eu te amo, eu te amo (1968) de Alain Resnais. Talvez Resnais, como afirma Deleuze [2], tenha sido o cineasta que mais captou a essência do tempo em relação à memória. Somos um conjunto de fatos que não cessa de se representar pelo passado, visando um futuro que não deixa de ser semelhante a esse passado. A construção temporal do personagem Claude Ridder (Claude Rich) é importante para entendermos como nossa memória flui de acordo com as percepções do presente. Podemos sempre nos confundir se algo já aconteceu mesmo ou se foi apenas uma invenção da nossa mente; o que não deixa de significar que aquilo existiu, independentemente da realidade em que aconteceu.
Ao viajar na máquina do tempo, Ridder experimenta passado e futuro em um mesmo tempo: o eterno presente fílmico. Não estamos nós fazendo a mesma coisa quando relembramos de algo ou imaginamos um futuro? Não estamos sendo atravessados por essa força do Tempo, seja ela sonora ou não, como no caso de Jessica, a todo instante?
[…] a materialidade do que nos comove não é algo necessariamente possível, afinal de contas, o Tempo só se experimenta quando nos desconectamos do espaço cíclico em que os ponteiros correm.
Jessica precisa achar a causa de sua insônia para quem sabe curar sua ansiedade. Para isso, ela precisa de um regresso corporal feito no espaço da natureza. É na selva – no selvagem -, que nossa mente consegue imaginar possibilidades infinitas para a realidade. Ou seja, conectar-se à ancestralidade e a tudo aquilo que já fomos e a tudo que ainda seremos. Carregamos conosco a explicação de nossa existência e de nossa extinção enquanto humanidade. Nesse cone do tempo, que é nossa vida, revivemos e vivemos as coisas na pele. Nossa história está gravada nas pedras e naquilo que chamamos de memória. Entretanto, não a memória cinematográfica, com um flashback à la Orson Welles, sempre a contar exatamente o que aconteceu, como um quebra-cabeça em que tudo se encaixa no fim. Estamos muito mais propensos às confusões do tempo resnaisianas: a memória se transforma de acordo com o nosso presente.
Jessica consegue talvez solucionar o seu problema, mas percebemos ao final do filme que uma memória não é exclusivamente algo que está no nosso passado, mas também é algo que está no futuro. Afinal, não existe passado e futuro para o Tempo, mas sim o momento único que experimentamos enquanto corpos.
Nossa construção temporal é muito mais complexa que um flashback, afinal, cada um de nós tem um ponto de vista completamente diferente sobre uma mesma existência, como trabalhou brilhantemente Joseph L. Mankiewicz em A condessa descalça (1954). E aqui, a materialidade do que nos comove não é algo necessariamente possível, afinal de contas, o Tempo só se experimenta quando nos desconectamos do espaço cíclico em que os ponteiros correm.
Não podemos garantir que amanhã o sol nascerá, não podemos garantir que amanhã estaremos aqui. Contudo, tal qual o barulho alojado na memória de Jessica, podemos com certeza sentir que estamos no aqui e agora, a partir do que fomos no ontem e do que seremos no amanhã.
[1] Para entender melhor a questão, recomendo a leitura do livro Matéria e memória (1896) de Henri Bergson e também a leitura que o Deleuze faz da obra do Bergson em Bergsonismo (1968) e em A imagem-tempo (1985).
[2] A imagem-tempo (1968) de Gilles Deleuze.
Foto de Luísa Machado.